Por Dr. Geraldo N. Oliveira (via blog Cristo Cósmico)
Não me surpreendo mais quando, de repente, um versículo da Bíblia sintetiza uma coisa complexa para ser dita e/ou escrita.
Assim me aconteceu recentemente com um versículo do livro “Sabedoria”.
O texto original e sua tradução vão aí adiante:
Sab 1,7 - ὅτι πνεῦμα Κυρίου πεπλήρωκεν τὴν οἰκουμένην, καὶ τὸ συνέχον τὰ πάντα γνῶσιν ἔχει φωνῆς.
Que significa : porque o Espírito do Senhor preenche o universo, e Aquele que une todas as coisas conhece a voz.
Passei dias (ainda estou nessa) curtindo a verdade e a beleza do pequeno texto.
Pudesse eu compartilhar...posso tentar...
Meio arbitrariamente vou dividi-lo em três segmentos, comentando-os sob a minha ótica.
1) porque o Espírito do Senhor preenche o universo (ὅτι πνεῦμα Κυρίου πεπλήρωκε τὴν οἰκουμένην)
Não desisto de pensar que o universo tem uma causa. Senti isso desde a infância e acabei por aprender os aspectos técnicos dessa conclusão num texto de Aristóteles, o “A respeito da Física”, mais precisamente no 8º livro. Vi tal concepção retomada e simplificada na Summa contra Gentiles (São Tomás de Aquino).
Também não posso não pensar que o que se apresenta no efeito precisa existir de forma mais perfeita na causa.
Também (e ainda) parece insensato pensar que a causa não persista causando , já que a causa entrevista por Aristóteles se situa fora da ordem física, não sofrendo, portanto, as transformações inerentes à ordem física. Ao contrário, a causa continua causando, pois que é de tal natureza que se cessa de causar o efeito não sobrevive.
Claro, estou colocando umas ideias soltas, sem mergulhar no mérito de nenhuma delas. Mas pode-se mergulhar. Num outro momento. Agora interessa-me apenas indicar por alto a complexidade da reflexão que , de repente, como num encantamento, aparece em uma poucas e estranhas palavras : ὅτι πνεῦμα Κυρίου πεπλήρωκεν τὴν οἰκουμένην ou “porque o Espírito do Senhor preenche o universo “
2) καὶ τὸ συνέχον τὰ πάντα (e Aquele que une todas as coisas)
Este fragmento vem como pesado reforço ao fragmento anterior. A palavra συνέχον é um substantivo que tem a ver com o verbo συνέχω, que, por sua vez é composto de duas partes : συν que exprime a ideia de juntar, de unir, e έχω, que significa literalmente “eu tenho” ou “eu mantenho”. A palavra me parece ficar bem traduzida por “aquele que une”.
(Curiosidade: Temos em português pelo menos uma palavra que tem tudo a ver. É “sinéquia”, do vocabulário médico , e se refere a situações em partes de um órgão ,ou estruturas, que deviam estar separadas se encontram “aderidas”. Pode ter como sinônimo “aderência”).
Volto ao fio da meada. O que está dito é que o Espírito de Deus é fator determinante da união de cada parte do universo. Ora, dirão , não caberia ao conhecimento científico determinar que coisa é que une coerentemente todas as coisas. Sim, cabe à razão investigar, mas também pela mesma razão eu sei que a causa última da realidade que experimento está fora da ordem desta mesma realidade que experimento. Repito, a causa última pertence a outra ordem de ser, a outra natureza, o que exclui o panteísmo.A causa última não pode cair sob o olhar de um microscópio nem sob um telescópio.
Só por via da revelação posso saber algo a respeito de sua natureza. Mas o versículo me diz algo que muito me interessa : é o Espírito do Senhor que mantém unidas todas as coisas, sustenta todas as coisas num todo imenso e coerente.
O Espírito do Senhor pode, assim, ser contemplado (= visto com o pensamento, conforme define o Aurélio) por “transparência”. E preenche o universo, de modo que não está só aqui, mas também ali, acima, abaixo, fora, dentro, aquém, além, no material, no imaterial... ativo em tudo, o tempo todo, e em todo lugar.
Por isso é que cantamos às vezes “o amor de Deus se mostra em pleno sol”.
3) Agora o final: γνῶσιν ἔχει φωνῆς ( tem conhecimento da voz)
Sem precisar dizer mas já dizendo, o sujeito gramatical deste fragmento é “o Espírito do Senhor”. Agora sabemos também que “aquele que une todas as coisas” também “conhece a voz”. Bela estranheza esta. Ele age, cria, sustenta... e também ouve. Que voz? Sem dúvida, toda. E entre todas as vozes do universo se conta a nossa vozinha, miúda mas pessoal, cheia de admiração e amor . Mais importante ainda: há uma vozinha muito muito familiar, a voz do coração, que não dispõe de palavras mas às vezes só de confusos e obscuros sentimentos. Que bom que o Espírito do Senhor também ouve essa voz, a mais disponível de todas, a mais sincera de todas, a que consegue falar o que não conseguimos dizer nem propriamente pensar.
Em síntese, contemplo o Senhor (por transparência) na Criação, em mim, fora de mim... em tudo.
E sei que em todos os momentos e lugares Ele me ouve, mesmo que eu não consiga falar.